AS SURPRESAS QUE NOS ESPERAM
Durante os 36 ano que vivi na Zâmbia, toquei na vida de muita gente, mas também foram muitos aqueles que tocaram na minha vida, ajudando-me a caminhar e a crescer, guiado pela fé em Jesus Cristo.
O missionário parte e vai proclamar a Boa Nova. E ao fazê-lo, vai ficar surpreendido pelas novidades que vai encontrar. É que o nosso Deus é um Deus de surpresas, ou como dizem os Bembas com quem trabalhei durante os 36 anos que vivi na Zâmbia, Shimwelenganya, significando aquele que é cheio de imaginação.
O missionário partilha do mistério da incarnação. Ele é um estrangeiro e de certa maneira sempre ficará um estrangeiro. Como estrangeiro é sempre um sinal do Outro, daquele que é diferente e que nunca pode ser reduzido ao que nós somos e ao que nós pensamos.
Mas o missionário deve enraizar-se e tornar-se uma árvore nativa na terra que o acolhe. Ele tem de se inculturar, se quer ser fermento, sal e luz, que possam ser aceites, porque ajudam a encontrar respostas para a procura de sentido para a vida.
Para esta inculturação a aprendizagem da língua é essencial. E não é só a língua, mas é também a cultura, os costumes, as tradições. Em Bemba dizem que Isabi likonka apensei. O peixe vai atrás da água. O missionário também de viver nessa água e ser parte desse povo que o acolhe.
No passado, por vezes ouvia-se falar dos Africanos como gente sem cultura e sem moral, a quem é preciso ensinar tudo, para os tirar das trevas e os levar até à luz. Esquecemo-nos de que é sempre fácil, mas também é sempre falso, ver-nos a nós como santos e justos e aos outros que são diferentes de nós como demónios. No fim, diante de Deus, nós é que nos tornamos uns demónios.
A primeira grande surpresa é a alegria com que nos acolhem, com que acolhem qualquer hóspede. Quando ia à suas casas, sempre me deram do melhor que tinham. Nesse acolhimento, há uma grande atitude de respeito, uma vez que a honra e o respeito – umucinshi, como dizem em Bemba, são muito importantes. Se pensarmos que essa atitude de respeito é subserviência, estamos muito enganados. Os Bembas têm muito orgulho da sua língua e dos seus costumes.
A alegria das crianças e dos jovens são surpreendentes. Não lhes fazem faltam brinquedos, porque de qualquer coisa fazem um brinquedo, e facilmente cantam e dançam. E na dança esquecem de tudo; parece que se esquecem até da fome, quando estão com fome. Lembro-me dum grupo de meninas da paróquia que foram acampar no mato. Andaram uns 25 km e quando chegaram esqueceram o cansaço da caminhada e começaram a cantar e a dançar.
O PODER DA PALAVRA
Uma das coisas que me impressionou desde o início é a facilidade com que se exprimem e com que falam em público. Muitos deles são oradores natos. E isto aplica-se a todos, desde os jovens aos adultos, os homens e as mulheres.
A palavra e o culto da palavra – o saber falar – são importantes. E quem fala sabe relacionar-se com a audiência. Digamos que são interativos.
OS PROVÉRBIOS
Em Bemba, há muitos provérbios; e eles são juntamente com as cantigas tradicionais como que o repositório da sabedoria povo.
Numa discussão, um provérbio dito na altura própria pode dar a solução. Há uma grande variedade de provérbios, que dão uma resposta às mais variadas situações humanas.
Tachicela kumo. Não amanhece da mesma maneira.
Amano mambulwa – A sabedoria apanha-se (agarra-se, aprende-se)
Amano uli weka tayashingauka ikoshi. Se estiveres sozinho, a tua sabedoria não te vai dar a volta ao pescoço.
Umunwe umo tausala nda – Um dedo só não esmaga o percevejo.
Imiti iipalamene taibula ukushenkana. As árvores que estão juntas sempre se roçam.
Umulimo bashikupele, icilambu lupi – O trabalho que não te deram, a recompensa é uma bofetada.
Omba umo ombela, amenso ya bantu tayalya – Que batam palmas como quiserem, os olhos do povo não comem.
AQUELE QUE VAMOS ANUNCIAR JÁ O ENCONTRAMOS LÁ À NOSSA ESPERA
Vai-se como missionário para anunciar a Boa Nova – para anunciar Jesus Cristo, mas damo-nos conta de que Aquele que vamos anunciar, chegou antes de nós e já está lá à nossa espera.
Por vezes, pode passar-nos pela cabeça a ideia de que Deus só nos revelou a nós os seus segredos, e que nós é que temos a sabedoria de Deus. Mas Deus é o Deus de todos, e cuida de todos, querendo a salvação de todos.
Certamente que na sua cultura – em várias tradições e costumes – se encontra a presença do pecado e do poder do mal – como se vê, por exemplo, no grande medo da feitiçaria que os escraviza, mas em todas as culturas há manifestações do pecado, e em todas as culturas se pode descobrir o poder do mal, que tenta dominar e conquistar o mundo.
No entanto, o que é surpreendente é encontrar tantos valores que manifestam a presença do Espírito de Deus, dum Deus que nunca abandona um povo totalmente a si mesmo. É por isso que a árvore do Evangelho se pode plantar e pode crescer como se fosse em terra própria.
A RELIGIOSIDADE DO POVO
O povo Zambiano – e poderíamos dizer – o povo Africano em geral – tem uma grande religiosidade, quer dizer tem um grande sentido do sagrado. De certa maneira, ele vive rodeado do sagrado. Agora há as grandes cidades, mas ainda há pouco, no tempo dos seus pais e dos seus avós, eles viviam em casas no meio da floresta. E a floresta é a casa dos espíritos. Ninguém podia ir caçar, sem pedir autorização aos espíritos e sem oferecer sacrifícios de agradecimento. Como o sagrado, a floresta atrai, mas também enche de medo e repele.
Deus é visto antes de mais como o criador – Shakapanga – o pai de todos aqueles que fazem, que inventam ou que criam coisas.
Muitos dos cânticos religiosos que compõem são de louvor ao criador, usando palavras de louvor, em que muitas vezes se confundem os fenómenos da natureza com Deus, como quando dizem: Kabengele, nsafya manika, significando em Janeiro-Fevereiro, eu inundo as planícies.
DEUS
Por outro lado, há ditos e provérbios que estão cheios de profundidade teológica que nos surpreendem:
- Lesa talaba iciminine, que significa: Deus não se esquece do que está de pé. E neste caso, o que está de pé não são as árvores ou as casas, mas os seres humanos. Deus nunca se esquece de nós.
- Shimwitwa apakakala – Aquele que é chamado em tempos difíceis. Aquele a quem se recorre, quando estamos perdidos e já não sabemos o que fazer ou para onde ir.
- Shimwelenganya – Sempre cheio de imaginação e de criatividade, sempre disposto a nos surpreender com a bondade do seu poder.
- Lesa malyotola. Ele é o protetor e o defensor, principalmente daqueles que sofrem injustiça.
Mas há um provérbio que diz tudo: Apatebeta Lesa, tapafuka cushi. Onde Deus prepara um banquete, não faz fumo. Esse provérbio é tão significativo que serviu de título ao catecismo que se usava para a primeira comunhão e para o crisma.
Quantas vezes nos sentimos abandonados até por Deus. Não vemos, e Deus parece estar ausente. Entretanto, ele está a preparar-nos um banquete. Quando o tempo passa e olhamos para trás, então é que nos damos conta de que Deus estava fazendo algo importante por nós. Ele é sempre o Deus das surpresas, um Deus que nos apanha desprevenidos.
A MENSAGEM LIBERTADORA DE CRISTO
Já fiz referência ao medo da feitiçaria. É um medo que paralisa e escraviza as pessoas. É um medo que dificulta a iniciativa e torna quase impossível o progresso. Embora considerem Deus como Shimwelenganya – o imaginador, o sonhador, cheio de intuição criativa, o homem esse deve conformar-se. Quem sobressai, quem sai fora do comum, quem faz mais e melhor pode ser acusado de feitiçaria.
Na crença na feitiçaria podemos encontrar várias aspectos que ajudam a compreender o que se espera do indivíduo em relação ao outros:
- A crença na feitiçaria traduz a procura de uma igualdade radical, onde ninguém pode ter porque eu não tenho. Quem tem muito mais do que eu, é porque usa feitiço e com o feitiço instrumentaliza os outros a seu favor.
- A rejeição do que é diferente. O diferente é sempre perigoso, e por isso tem de ser exposto e rejeitado. O diferente destrói a harmonia e a convivência. Por isso, não há lugar para experimentar e para procurar alternativas. O caminho é conhecido, e as normas estão estabelecidas. Os mais novos devem obedecer e cumprir, aprendendo dos mais velhos. O conformismo é o único caminho aberto a todos, e o único que é seguro.
- A recusa de aceitar a responsabilidade por aquilo que aconteceu, que correu mal. Os culpados são sempre os outros, nunca sou eu. A minha pobreza, a minha doença, a minha má sorte, o não encontrar emprego – tudo isso é causado pelos outros.
- Atribuir-se poderes divinos, em que eu ganho controle sobre a vida dos outros. Só que não é um poder divino, mas um poder maligno, que escraviza, destrói e mata. É o poder do mal ou do mau. Por isso, agora, sob a influência cristã, as pessoas falam muito menos de feitiçaria e muito mais de satanismo. E vêem o poder satânico em tudo. Quem se torna rico é satanista. Quando a vida não me corre bem, é porque alguém me amaldiçoou e me quer mal.
- Não há morte natural. Toda a morte é causada pela inimizade de alguém, e esse alguém pode ser o pai ou a mãe, o irmão ou a irmã, ou um vizinho. Deus nunca é acusado da morte de ninguém.
- Esta acusação leva à procura de quem matou. Uma vez encontrado o culpado, é denunciado e excluido da comunidade e da família. Esta acusações destroem aldeias, comunidades e famílias.
- Esta acusação implica a rejeição da morte e o desejo profundo de imortalidade. Somos mortais, mas não conseguimos aceitar a nossa mortalidade.
Com o problema da SIDA, que afeta principalmente os mais novos, os velhos são acusados de feitiçaria. A sociedade está a passar por grandes transformações, em que as pessoas se sentem perdidas e desnorteadas. Os velhos já não são um ponto de referência e já não são respeitados como eram antigamente.
Há um provérbio que diz: Umukulu apusa akabwe, tapusa akebo. O velho pode não acertar com a pedra, mas acerta com a palavra. Isso já não é verdade. Os jovens querem fazer o seu próprio caminho e consideram os velhos como ignorantes e atrasados. Não só lhes faltam ao respeito como os ignoram.
Aqui a mensagem de Jesus Cristo é uma mensagem libertadora. Cristo é o Senhor de tudo e de todos, mas é um Senhor que não oprime, antes liberta.
As pessoas sentem o poder da oração e dos sacramentais, como a água benta, o sinal da cruz, o terço.
UMA IGREJA POUCO CLERICAL
Na Europa, os fiéis esquema que os padres façam tudo. A maioria tem uma atitude muito passiva.
Na Zâmbia, a Igreja é de todos os seus membros e todos têm uma palavra a dizer. Certamente que o haver poucos padres contribui para isso. Muitas aldeias são visitadas duas ou três vezes por ano. Mas as pessoas reúnem-se para a celebração dominical e preparam gente para o batismo. Em muitos aspetos, a Igreja é muito mais laical e muito mais participativa.
AS ESCRITURAS
As Escrituras têm um papel muito importante na vida das comunidades cristãs, nos grupos e nas associações. As pessoas leem a Bíblia e refletem sobre a palavra de Deus. A espiritualidade é uma espiritualidade bíblica. Talvez devido à influência protestante, as devoções são muito menos importantes do que aqui.
O CASAMENTO
O casamento tradicional era uma das grandes celebrações na família e na comunidade
E não há casamento sem preparação. A família convida os que vão dar as instruções e tem de os recompensar. Os ifimbusa (instrutores) são muito respeitados na comunidade. Foi para mim uma grande honra chamarem-me icimbusa (ou shicimbusa).
Nas instruções tradicionais, a dimensão sexual tinha lugar importante, bem como o relacionamento entre marido e esposa, e o relacionamento com os familiares.
Muitas das danças constituem um celebração do sexo e têm um lugar importante na preparação para o casamento. Por outro lado, à relação sexual era atribuída uma dimensão sagrada, com muitos tabus para a proteger.