Na celebração da Festa da Sagrada Família, a Igreja oferece-nos um texto da carta de S. Paulo aos Colossenses que é como a cartilha de Paulo para a vida em família e para a vida na comunidade. Paulo aconselha a enchermo-nos da misericórdia, da bondade e da humildade; do perdão e da reconciliação, e tudo isto sendo guiados e motivados pelo amor, que é como um sobretudo que se veste por cima de tudo a fim de tudo aperfeiçoar. Paulo aconselha ainda uma atitude de ação de graças, mantendo a paz e sendo guiados pela Palavra de Cristo, de maneira a fazermos tudo em seu nome.
Ao refletir sobre a família, vieram-me à mente as famílias zambianas e o muito que aprendi com elas. Para o Africano, seja ele Zambiano, Angolano, Moçambicano, Congolês ou de qualquer outro país, a família é sempre uma comunidade alargada, a comunidade de todos aqueles que ainda podem traçar a sua origem comum. É uma família alargada, que vai para além dos pais e dos irmãos. Para a constituição dessa família, o casamento fornece os blocos essenciais. E daí que se prestasse muita atenção ao casamento, que nunca era assunto individual do homem e da mulher que se casam; pelo contrário, o casamento involve as famílias dos dois lados e a comunidade a que essas famílias pertencem. Os noivos tinham de ser instruídos e preparados para se tornarem capazes de constituir um novo lar e viver de maneira harmoniosa, contribuindo para a paz e o bem-estar de toda a comunidade.
As instruções eram dadas principalmente através de canções repetidas até ficarem na memória de maneira indelével. Havia canções sobre os mais variados temas, desde o relacionamento com os sogros até às atitudes de mútuo respeito para manterem a união e crescerem no amor. Da muitas canções que tenho escritas, vou apresentar algumas que podem dar uma pequena ideia da riqueza dessa sabedoria tradicional.
Cantando para a jovem que se vai casar, as instrutoras falam-lhe da dignidade que vai receber, uma dignidade que lhe é concedida por Deus. Afinal, o casamento não é algo simplesmente humano, mas o próprio Deus está envolvido nele e é bom estar consciente disso.
Bamuteka pa kapuna, Assentam-na no banquinho,
Ni Lesa wamusansabika. Deus é quem a eleva.
Há uma outra canção que também fala de Deus fazendo referência à fecundidade que é como um celeiro e o cereal aí guardado foi cultivado por Deus:
Butala Lesa walima O celeiro Deus é quem cultivou
Namwelenganya nshenda na butala ó sonhadora eu não ando com o celeiro
Lesa walima Deus é quem cultivou.
A vida é sempre um dom de Deus, embora ele tenha em nós o celeiro onde ele guarda as sementes da vida.
Há várias canções onde é posta uma grande ênfase na necessidade do respeito mútuo, havendo canções que se dirigem ao marido e outras que instruem a mulher:
Balume bali ne ciwowo O meu marido sempre a zangar -se,
Ciwowo, ciwowo ndeya a zangar-se, a zangar-se, e eu vou-me.
Kabili babwesho mucinshi Então começou a mostrar-me respeito
kanjikale, kanjikale balume bandi. E eu fico, eu fico, ó meu marido.
A mulher queixa-se que o marido anda sempre zangado, sempre aos berros e sempre a insultá-la, a ponto de ela decidir sair de casa. Mas o marido mudou de atitude e começou a respeitá-la, e por isso ela fica. Muitas vezes, as canções têm variantes que podem ser cantadas uma a seguir à outra.
Balume bandi Marido meu,
Balume bandi Marido meu,
banjebe ciwowo, insultou-me
ciwowo ndeya ine insultos, eu vou-me.
balume bandi Marido meu
banjebo mucinshi falou-me com respeito
kanjikale e eu fico
kanjikale balume bandi eu fico, marido meu.
Acontece também que algumas mulheres não só não respeitam os seus maridos, como podem pôr em perigo a sua vida. E é a isso que se refere a canção seguinte:
Canga na mwele Brincas com a faca
Canga na mwele brincas com a faca,
mukashi wandi ó esposa minha
Canga na mwele, brincas com a faca
Canga na mwele brincas com a faca
ukanjipaya. um dia vais matar-me.
No entanto, tradicionalmente, a mulher tinha uma posição inferior ao homem, e isso é bem expresso na seguinte canção:
Cibale Cibale Chibale, Chibale
Kasambe mulume, lava o marido,
We cinangwa, ó inútil,
Na panshi utote, no chão deitada bate palmas,
We cinangwa, ó inútil,
Cibale, Cibale Chibale, Chibale
Chibale é o nome duma rapariga e chamam-na de inútil; ela esquece-se do seu dever de dar banho ao marido, uma vez que é dever dela aquecer a água para o marido tomar banho e ajudá-lo no que for preciso. E depois de fazer todo esse trabalho, deve deitar-se no chão e bater palmas em sinal de agradecimento e de subserviência.
Finalmente, apresento uma outra canção que fala sobre o relacionamento com os outros. É preciso agir sempre com discrição, sem se intrometer na vida dos outros.
Fulwe pa fyakwe A tartaruga nas suas coisas
aingisha umukoshi mu cifwambako mete a cabeça na carapaça
pa fya banankwe nas dos outros
akolomono mukoshi mu cifwambako. estica o pescoço fora da carapaça.
Ninguém vive sozinho, isolado como se fosse uma ilha. Fazemos parte de uma família e de uma comunidade e precisamos de estar preparados para viver num relacionamento harmonioso.